E havia algo ali...

A pequena subiu na estante, de novo, e quase caiu, de novo. Na hora que noticiaram todos tinham certeza que era para pegar o pote de biscoitos, como tinha feito mais cedo, e a culpa caiu sobre os pais.
"Irresponsáveis! Ninguém fica de olho nessa criança?! Um dia ela vai se machucar feio! Para terem uma filha modificada que nem a mais velha, é óbvio que nunca que iam cuidar bem da mais nova!" 
Pobres pais, a culpa não é deles. A culpa caiu sobre a irmã quando viram o que a pequena tentava escalar. Era a estante de livros do quarto da mesma. Haviam dois livros no alto da estante que por alguma razão ela tentou pegar. Era estranho, não haviam capas animadas ou coloridas, ou ilustrações bonitas. Era livros de capas de cores neutras os que ficavam lá em cima, os favoritos da irmã. Mas mesmo assim, a culpa caiu sobre a mais velha.
"Com uma irmã dessas, óbvio que ia ser assim! Como essa garota não fica de olho na irmãzinha?! Ela é só um bebezinho, tem que ter alguém de olho sempre! Modificada desse jeito, óbvio que não cuida da mais nova!"
As críticas foram ignoradas e a pequena pega no colo e ainda continuava apontando para o alto da estante, do colo da mais velha, quase chorando por perceber que não chegaria à seu objetivo. A irmã percebeu o que a criança queria e pegou o tal livro, fazendo que a mesma parasse de com o início de choro que se formava. 
Os olhos redondos se vidraram fixamente, brilhando como se fossem as estrelas mais brilhantes do céu em uma noite completamente negra, no livro enquanto folheava as páginas. A mais velha sorriu ao ver o interesse da irmã, que estava aprendendo a ler ainda, e olhava as páginas do livro como se aquelas fossem as coisas mais interessantes do mundo, mesmo que não houvesse uma figura sequer no mesmo. Era um tal de Caio Fernando Abreu que a pequena tentava ler, silabando palavra por palavra, aprendendo a pronunciar palavras que estavam fora de seu mínimo aprendizado. Os mais conservadores da família achavam um absurdo que uma criança de 3 para 4 anos estivesse lendo aquele tipo de coisa. Achavam absurdo até que a mais velha lesse um autor daqueles. Os pais achavam incrível que sua caçula estivesse desenvolvendo tamanho aprendizado com um livro daqueles.
E em sua voz infantil, recitava baixo, silabando as palavras, por não conhecê-las e a irmã mais velha a ajudando na leitura: “Não iriam entender que vezenquando a gente fica triste sem motivo, ou pior ainda, sem saber sequer se está mesmo triste.” e prosseguiu outro conto "Evidentemente que, quando eles saíam, os meus nervos estavam simplesmente aos pedaços, e acredito que também os deles não andassem em muito bom estado, embora sorrissem sempre e procurasse manter-se simpaticamente compreensivos para com a minha absoluta falta de habilidade em lidar com as pessoas"...
E continuaram naquela leitura calma e pausada, que durava apenas dez minutos para cada três linhas de cada conto, até o momento que a garotinha dos olhos grandes e castanhos caiu no sono no colo da irmã, que a pôs para dormir com um sorriso no rosto....

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Crônica de Halloween

Oh, fuck it

Velho violinista