O viajante

O viajante pegou a mala  de alças desajustadas e com a passagem produzida naquele papel liso e estranho na mão foi para o maior terminal de ônibus da cidade que o tamanho não ultrapassava o de uma quadra poliesportiva de escola primária. Já tinham te falado que o mundo era grande. Sabia que aquele lugar era ridiculamente minúsculo e achava-se grande demais para o lugar, achava-se do tamanho do undo. Se sentia gente do mundo. Gente da agitação. 
Sabia que ninguém mexeria nas coisas enquanto estivesse fora, por isso largara a casinha simples de tijolos expostos e rebocados e fora embora. Se voltaria, se arrependeria-se, se morreria, se casaria... A mente está entregue ao "se" e à certeza. Paradoxo instantâneo no momento que colocou os pés com chinelas de couro gasto para fora. As poucas vacas que tinha tinham muito pasto e mandacaru a vontade à vontade, qualquer coisa aqueles animais malhados e monocromáticos com o sino pendurado no pescoço por uma tira de couro preto podiam ir para o pasto vizinho, da mesma maneira que os gados vizinhos podiam vir comer em seu pasto. Aquele pedaço de terra que herdou e que era em uma cidadezinha interiorana quase no sertão e todos se conheciam. Os nove irmãos fugiram de lá há tempos e quando os pais faleceram, nunca mais deram as caras, nunca ligaram, nunca escreveram, nunca se preocuparam em manter contato. Alguns não deram mais caras desde que fugiram de lá. Nada de notícias em momento algum. Aos 30 decidiu então: Vou para a capital ser tão grande quando me disseram que a capital é!
Estava no ponto de ônibus com o chapeuzinho bege que ganhou da sobrinha 10 anos antes, as eternas chinelas de couro batido, a calça jeans rasgada e manchada de terra e barro e a camisa que comprara pra usar no Natal passado e que, tal qual a calça, estava suja de terra e barro. Nem despediu-se dos conhecidos e lá se foi. Nem quinze minutos depois de ter chegado. 
Ficou espantado com o tamanho do ônibus, já tinha visto muitos entrando e saindo da cidade para ir pras outras cidades e alguns pra capital, mas nunca havia nem sonhado em pisar dentro de um deles. O estado era pequeno, gostava de ir andando até as cidades vizinhas quando lhe faltava algo de sustento na cidade, por mais escaldante que o Sol sobre sua cabeça estivesse. Estava indo em direção à um mundo novo, à uma vida nova e ele nem imaginava o que haveria dali em diante, só sabia que teria de esperar 6h sentado até chegar à capital. Não sabia como passaria todo esse tempo, mas sabia que precisava ir e que não havia outro tipo de condição para ir. 
Passava pelas beiradas do sertão, via as pessoas trabalhando naquela terra seca sob o sol quente. Acabando-se com os músculos, esfolando as mãos, esquentando as cabeças, queimando-se a pele e fatigando os corpos. Lembrava de estar fazendo isso no dia anterior. Não fizera isso aquele dia porque não lhe deixariam embarcar no ônibus todo sujo e suado, mas se lhe deixassem, estaria trabalhando até o momento em que embarcasse no ônibus. Mas era a vida que levava e que sentia prazer em ter. Nem ler direito lia. Lia pouco, bem pouquíssimo mas esse pouquíssimo lhe bastava pra entender algumas poucas coisas para virar-se bem. 
Queria ser do tamanho do mundo e por isso a cidade era o lugar perfeito para seguir, mas logo viu crianças sentadas na beira da estrada de terra, tomando cuidado para os poucos veículos que por ali passavam não acertassem seus pés sujos e encrostados. A pele estava negra de tanto sol e quase se juntava aos ossos. Não havia muita comida mas muito trabalho havia. Inversamente proporcional. O verão era duro, não chovia então tinham que esperar a chuva que vinha no inverno pra conseguir algo. Primavera lá era algo meio maldito, devia chover muito mas quase não chovia e eles ficavam lá, apodrecendo sob o Sol enquanto a carne das feridas nas mãos entrava em estado de putrefação devido ao quanto eram aquecidas... Era deplorável, mas ele participava daquele mundo, aquele mundo era ele....
O ônibus fez uma parada em uma cidade meio desabitada no meio do caminho após 3h de percurso e o viajante se cansou. Pegou a mala surrada e a mochila e desembarcou nessa cidade e deu a andar e a pensar e chegou a conclusão de que nunca havia pensado tanto na vida quanto naquele dia.
Pôs-se a andar em direção à casa. Não tinha mapa e orientava-se por sua geografia não-escolar que lhe levara longe, sempre. E ele iria até lá sem nem pensar duas vezes se cansaria ou não. Apenas pegou as malas e partiu. E partiu em busca de voltar para seu pequeno pedaço de fim de mundo dentro do mundo que existimos e nunca se arrependeu de nada, nem nadas 5h que caminhou de uma cidade à outra até chegar em casa.
Não demorou e dormiu, e dormiu como se não houvesse amanha e ignorou qualquer um que pudesse estar lá porque ele decidiu que iria descansar uma vez na vida dele........... 

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