Os amantes

Que partam.
Todos já foram e apenas os amantes ficaram.
Todas as cortinas já desceram e apenas eles ficaram em sua exposição e sujeira. Apenas eles, em suas faces cobertas, mantiveram-se de pé enquanto os outros foram ao chão. Apenas eles mantiveram-se firmes no erro cometido.
Os amantes eram bons.
Sempre foram. Sujaram-se por divertimento. Ninguém viu suas faces mas todos sabiam que riam, que desfrutavam dos traídos. Se expuseram com as pernas firmes e sem fraquejar, ainda eram amantes, mesmo que todos tivessem descoberto.
Alguns defendiam que a vida em casa era difícil, mas todos sabiam que não haviam desculpas suficientemente plausíveis para tal ato. Os outros estavam mais arrependidos do que eles e nada os incomodava. Os amantes não sentiram vergonha, desprezaram aqueles que injuriaram-se com suas faces cobertas.
A camareira foi quem os encontrou a priori. Fora a face, nada mais estava coberto. Despiram-se de toda a vergonha e de todo pudor e nada mais restava quando foram pegos, pois quando a senhora os viu, eram um só. Os outros quiseram uma declaração de arrependimento ou ao menos que respondessem o porquê de terem feito aquilo, no enquanto, a única coisa que obtiveram foi uma sentença "Não fizemos nada de errado" e prosseguiram até a praça da cidade. Não ouviram nenhuma declaração, ou se ouviram, não prestaram o mínimo de atenção que fosse, pois prosseguiram como se não houvesse nada de errado em sua procissão. Suas faces ainda cobertas não se revelavam e os amantes prosseguiram.
A relativização do pecado. Para os amantes, não havia nada de errado no que faziam. Para Deus e para os outros, tudo estava errado e mais um pouco. Pecaram, contra o outro, contra si mesmos. Pecaram de todas as formas que poderiam pecar: contra si, contra o outro, contra as divindades, contra a sociedade(...) contra tudo que um dia lhes foi apresentado.
Eram dignos de sentença. Não havia o que julgar porque foram vistos em carne, em adultério. Foram vistos em pecado e sofreriam as severas consequências deste.
Os panos foram retirados e as faces reveladas.
Os amantes sorriram em confidência de segredos contidos que apenas eles tinham a capacidade de saber, de tão protegidos que eram. De vestes ralas e escassas os amantes seguraram as mãos e aceitaram as dores.
A traída, aos prantos, implorava para que poupassem o adúltero porque ele era um bom homem e bom senhor. Ele apenas lhe sorriu, um sorriso sangrento, e disse que se permaneceria ao lado daquela que o complementava. Os prantos se intensificaram e ela culpou a amante de bruxaria. Que o enfeitiçara e ela que merecia a punição, não ele, porque era inocente. Que a amante, com tantos livros e conhecimentos além dos conhecimentos de casa, era culpada de tudo e que ele nada fizera, apenas fora enganado pelos encantamentos e feitiços dela. O pai da adúltera em defesa da filha, gritava e pedia para que acabassem com a raça daquele desgraçado que um dia ele dera a confiança de entrar em sua casa, mas que não desgraçasse sua filha mais do que o "crápula" fizera. Que apesar da vergonha, ela era moça de bem e viria a lhe dar netos em breve, "herdeiros das terras da família".  "Terei filhos com ele, meu pai" a amante respondeu e seu pai exasperou seu desgosto enquanto as irmãs da moça o amparavam.
"Eu sabia que ela desgraçaria nossa família. Desde que nasceu! E sempre foi a favorita de papai!" uma das irmãs falou com tanto desdém quanto lhe era possível. "Minha querida! Onde errei?! Te dei jóias, presentes, diamantes, sedas e tudo que era possível e ainda assim você me desonra de tão monstruosa maneira! Onde errei?!" o traído questionava. Talvez não tivesse errado, apenas não era ele que a completava. "Irmã porque fizeste isso? Seu futuro era brilhante! Agora só terá dor e sofrimento e uma vida de grandes dificuldades! Por que fizeste isso?!" a irmã mais velha a questionava. A caçula alcançara tudo o que toda boa mais desejava na vida -- uma suntuosa casa, um belíssimo casamento, jóias, tecidos finos, um marido de ótima linhagem, todo possível conforto existente -- e ainda assim, desperdiçara tudo por "amor" ao amante e por querer viver uma vida ao lado dele.
Ele era um ninguém sem família que, através das boas amizades, se tornou um dos mais cobiçados e poderosos solteiros da cidade, que logo lhe foi arranjado casamento com uma das filhas de uma das mais tradicionais famílias, e ela era a moça, caçula da família mais poderosa da cidade, prometida para o filho mais velho da segunda família mais poderosa. Em um dos infinitos bailes que as famílias promoviam os dois se conheceram e entre sorrisos se tornaram amantes. Juraram que ficariam um ao lado do outro independentemente do que ocorresse e assim que possível, partiriam para o mais longe que pudessem ir.
As irmãs não entendiam porque alguém trocaria um futuro com tantas joias, luxos e requintes para fugir sem identidade e sem rumo com um homem casado e que a esposa exercia esforços homéricos para ter filhos e dar continuidade à nobre linhagem a qual pertencia. Mas os dois preferiram ser amantes. Sem garantias, sem certezas, reservas ou seguranças.
Sem face, sem rumo e sem reputação.
Que morressem ali, não se incomodavam. Os outros se incomodavam mais do que eles.
Que se incomodassem. Era uma dor que achavam que valia a pena cruzar...

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